Estratégias para atravessar o caos #21
Há quem reze, medite ou deixe para lá. Além de me informar, preciso da arte para aguentar todas essas dores de um mundo acelerado, trágico, mas ainda bonito
Está difícil respirar por aí?
Do Norte ao Sul do Brasil a reposta é com certeza. Faz dias que abrir a janela - e não ver necessariamente um céu azul - dá uma dimensão maior do incômodo trazido pelo clima seco e o calor do nosso novo anormal climático. Há frente frias e chuviscos em alguns lugares porque vivemos num país imenso. Mas ela está ali: a sensação de uma precoce finitude.
"Tu tens um medo: acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza. Na dúvida. No desejo.
Que te renovas todo dia.
No amor. Na dúvida. No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno”.
Cecília Meireles, Cântico VI
Desde criança decoro poemas. Estou pensando neste há tempos. Nunca foram fórmulas, que me salvassem de passar de ano com o mínimo de alívio em Matemática ou entender os mistérios da Física. Talvez essa memória, alimentada pelas leituras da coleção “Para Gostar de Ler”, seja um pouco o meu respirador.
Na pandemia foi assim. Além de pensar a maior parte do dia na morte que rondava o mundo, dentro de uma vida que (por sorte) teve o privilégio de poder se trancar num apartamento, encontrei na poesia a minha reconexão com os livros.
Eu não largava as notícias e tive um bloqueio como leitora que durou meses. Se eu tentava um romance, não assimilava. Desse momento surgiu meu podcast, Te Dou Um Poema, que interrompi pela correria de dois trabalhos.
Dois trabalhos, ainda bem, mas com aquela energia do seriado distópico “Years and Years”. Sabe aquele trampo que nunca foi suficiente para juntar dinheiro? Que fez a rotina virar do avesso? É o mesmo que do nada dá um tapinha nas costas “valeu pelos serviços prestados”. Porque rapidamente não importamos mais. E há que se considerar camadas que atravessam gênero, raça, idade e classe.
Sempre que o ar, as notícias ruins e as demandas impostas pelos outros estão prestes a me sufocar, cultivo o ritual de me alimentar de arte e de cultura. Cada um tem a estratégia possível: uns rezam ou meditam, outros correm maratonas e há os que seguem a vida numa boa. Mas será que é possível adiar o fim do mundo? Só mesmo com ações coletivas e elas existem (daí, o pulmão meio verde, meio devastado que ilustra a edição).
Enquanto o mundo gira, queima e alaga em toda sua extensão, eu vou com um pé na informação e outro na ficção. Um podcast de notícias durante a caminhada na esteira, o livro “Paixão Simples”, da Annie Ernaux, para suspirar, o umidificador e o inalador para respirar, gelo na água dos gatos, carinho na barriguinha dos gatos.
Evito dar opiniões sobre gente careta e covarde, compro os ingressos para um show no Sesc Pompeia, que começa pontualmente, oferece qualidade e valor justo. Coloco post-its na parede para me lembrar de marcar exames, pagar contas, comprar açafrão. Levanto toda hora para tomar água em meio a notificações de brigas dos vizinhos, memes e textos jornalísticos opinativos. Saio com amigos para tomar cerveja.
A pandemia arrefeceu e muitos de nós não continuamos os mesmos. O fogo vai cessar, como a água das enchentes deu trégua. Todos os dias deixamos de ser os mesmos. Só que a transformação não precisa acontecer após extremos ou tragédias. Basta se atentar.
Parar.
(Tentar) Respirar.
Mesmo na cidade que registrou a pior qualidade no ar em setembro.
Estar atenta (e tentar ser forte).
Como disse Susan Sontag, “o escritor é alguém que presta atenção ao mundo”. Não sou escritora, mas gosto de escrever, de prestar atenção ao mundo, de me jogar em experiências artísticas e, por este motivo, esta newsletter existe. E, a cada edição, um novo leitor é o motivo, o leitor constante é o motivo e tudo o que se há para contar é o motivo.
Matilde Campilho em “Jóquéi”.
🎶 Playlist
Fiz uma seleção daquelas músicas que trazem um sol em dias cinzentos, abraço em dias frios e refresco na temporada quente e seca.
🖼️ Arte Marginal - Leonilson
Em cartaz no Masp até 17 de novembro, “Leonilson: agora e as oportunidades” dá continuidade à ótima programação do museu,com grandes artistas LGBTQIA+ em 2023. Toda terça-feira tem gratuidade no Masp. A exposição está imperdível. Para agendar a visita, é só clicar aqui.
Leonilson (1957 - 1993) foi uma figura central na arte marginal e seu trabalho me emociona bastante. Ele produziu intensamente desenho, pintura e foi um exímio artista de bordados, uma herança da cultura cearense. Morreu precocemente, aos 36 anos, por complicações relacionadas ao HIV/Aids.




📚 Caio F
Caio Fernando Abreu foi jornalista, dramaturgo e escritor. Suas crônicas são uma inspiração para mim. Ele só teve um livro de poesia publicado, mas sua produção foi intensa enquanto ele esteve por aqui.
Faz anos navego o incerto
Faz anos navego o incerto.
Não há roteiros nem portos.
Os mares são de enganos
e o prévio medo dos rochedos
nos prende em falsas calmarias.
As ilhas no horizonte, miragens verdes.
Eu não queria nada além
de olhar estrelas
como quem nada sabe
para trocar palavras, quem sabe um toque
com o surdo camarote ao lado
mas tenho medo do navio fantasma
perdido em pontas sobre o tombadilho
dou a face e forma a vultos embaçados.
A lua cheia diminui a cada dia
É isso. Um abraço e até semana que vem!
amei essa frase: "Enquanto o mundo gira, queima e alaga em toda sua extensão, eu vou com um pé na informação e outro na ficção" - não dá pra viver só no mundo da fantasia nem só na realidade. é preciso um pouquinho de cada!
A arte salva - mais do que nunca! E defendo que a alegria é revolucionária, ainda que há que se criar estratégias para mantê-la nesses tempos apocalípticos. Adorei seu texto, Ludmila, ressoou muito por aqui ❤️