Como adiar o fim do mundo? #18
Preservar a natureza na visão do imortal Ailton Krenak, uma playlist que vai de Midnight Oil a Katu Mirim e tem poesia de Manoel de Barros
Em 1986, um dos grandes acontecimentos da minha infância foi a aparição do cometa Halley, que esteve a 63 milhões de quilômetros de distância da Terra. Olhar para o céu era uma rotina. Eu queria “pegar carona na cauda do cometa, ver a via láctea”. Nunca sonhei tanto em virar cientista quanto naqueles meus nove anos de idade.
O cometa seguiu inspirando, como cantou Beto Guedes, “o milagre já é estar aqui pra ser. Nenhum Halley é mais brilhante do que nós. O mistério do sol de primavera lá da serra. Lágrima de amor que nenhum de nós jamais chorou” e fui percebendo que toda aquela contemplação e comoção era para músicos, poetas e pessoas comuns.
Quando acampávamos em família, olhar para o céu era mágico. Hoje, sinto saudade de constelações, ainda mais porque a “feia fumaça que sobe apagando as estrelas” foi virando um novo normal com o qual a gente não deveria se acostumar. Quando li “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, do escritor e líder indígena Ailton Krenak, fiquei refletindo por dias (e ainda reflito).
Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta, faz chover.
O cometa vai passar em 2061, porém a Terra não será a mesma. Possivelmente, muitos de nós não estaremos aqui, mas não é isso que me dá uma ponta de tristeza e melancolia porque “a gente é feito para acabar”. O pesar é sobre como estamos deixando essa Terra.
Os incêndios criminosos em florestas para o avanço do plantio de soja, o garimpo que despeja o mercúrio no rio, envenena peixes, indígenas e ribeirinhos, os microplásticos em nossos organismos, a sede dos políticos em aprovar benefícios próprios e ignorar ações que protejam as cidades das catástrofes climáticas, os pontos de não retorno da Amazônia.
Por que não conseguimos ouvir os povos originários? Quando rotulamos quem se preocupa com o meio ambiente como “ecochato”? De que forma deixamos que “passassem com a boiada”? Até quando assistiremos pela televisão santuários, como o Pantanal, sendo reduzidos a pó sem nos indignar?
Sabedoria ancestral, ciência e fatos vêm nos mostrando que todas as mudanças do clima estão mais aceleradas por causa da ação humana. A expressão “ecoansiedade” surge do medo que sentimos diante deste cenário de devastação ambiental de grandes proporções dos últimos tempos. Eventualmente, me deixo levar e fico em desencanto. No entanto, é preciso revisitar as ideias de Krenak.
Somos alertados o tempo todo para as consequências dessas escolhas recentes que fizemos. E se pudermos dar atenção a alguma visão que escape a essa cegueira que estamos vivendo no mundo todo, talvez ela possa abrir nossa mente para alguma cooperação entre os povos, não para salvar os outros, para salvar a nós mesmos.
Nos salvar um pouco e salvar a nossa casa. O primeiro indígena a ocupar uma cadeira (na lógica antes tarde do que mais tarde ainda) da Academia Brasileira é autor de outros ensaios bastante contundentes que nos ensinam a reprogramar as nossas rotas e das novas gerações, como “A Vida Não é Útil”, “O Amanhã Não Está à Venda” (gratuito aqui) e “Futuro Ancestral”.
Para que nossas crianças vejam cometas com os olhos e corações saltitantes!
🌳 Manoel de Barros
Um dos principais nomes do pós-modernismo, Manoel de Barros (1916-2014) ficou conhecido como o poeta do nada, das desimportâncias e das singelezas. A natureza e o universo pantaneiro eram a base de seus poemas, que nos guiam para um universo onde passarinhos podem importar mais que aviões.
Deus Disse
Deus disse: Vou ajeitar a você um dom:
Vou pertencer você para uma árvore.
E pertenceu-me.
Escuto o perfume dos rios.
Sei que a voz das águas tem sotaque azul.
Sei botar cílio nos silêncios.
Para encontrar o azul eu uso pássaros.
Só não desejo cair em sensatez.
Não quero a boa razão das coisas.
Quero o feitiço das palavras.
🌳 Playlist
De Pretenders a Billie Ellish, de Caetano Veloso a Katu Mirim. Uma playlist para ampliar os horizontes quando pensamos num mundo melhor para todos nós.
É isso. Um abraço e até semana que vem!