A arte de envelhecer #5
David Bowie, Julia Louis-Dreyfus, Conceição Evaristo, a série 'Hacks', Taciana Barros e outras inspirações
“Envelhecer é um processo extraordinário em que você se torna a pessoa que você sempre deveria ter sido” - David Bowie
Todos os dias eu me pergunto: quem eu quero ser enquanto envelheço? Não se trata de romantizar a passagem do tempo, que tem muitos percalços e esbarra numa sociedade que valoriza a ideia de uma juventude padronizada. “Ser a pessoa que você sempre deveria ter sido”, talvez, seja olhar com generosidade para algumas etapas da vida já cumpridas.
Eu cultivei por anos um mal-estar com a minha adolescência, marcada pela separação dos meus pais, um corpo que eu odiava e um sentimento de inadequação permanente. Nada disso é tão especial. Aliás, é muito comum. E, no dia das mães, mexendo nas fotos antigas da família, em Belo Horizonte, eu me encontrei com 13 anos, de biquíni, cabelos longos (com cachos moldados com neutrox rosa) e sorrindo com amigas. Precisei de 34 anos para achar aquela adolescente bonita. Isso é muito cruel.
Uma das respostas sobre quem eu quero ser é: mais generosa comigo e com as minhas inseguranças (dentre as quais, escrever. Eu sempre amei escrever e, simplesmente, parei. Um Teto Todo Meu, como contei na primeira edição, retoma esse propósito, vocação ou mesmo pretensão). Para isso, eu venho lendo e escutando especialmente - ao contrário do que a gente costuma fazer na juventude - as pessoas mais velhas (mulheres, sobretudo).
No podcast da atriz Julia Louis-Dreyfus, Wiser Than Me, a ideia é essa. O episódio com Jane Fonda abre os trabalhos e passa a régua numa trajetória nada linear de sua vida e carreira. O mais incrível é ouvir todas as imperfeições e fragilidades que a atriz revela. No entanto, numa certa altura da vida elas perdem a importância para o que realmente vale a pena, como os laços com as nossas amigas. São as redes de mulheres que desde sempre nos fortalecem.
Fonda estrelou ao lado de Lily Tomlin Grace & Frankie (2015-2022). A série mostrava mulheres com mais de 70 anos que tinham tudo estabelecido e precisaram morar juntas (num convivência que poderia ser intolerável), depois que seus maridos, sócios numa empresa de advocacia, saíram do armário e decidiram se casar. A ficção mostra que na vida a gente, em certos momentos, pode escolher qual máscara usar: se a da tragédia ou a da comédia. Assim, as duas resolvem dar novo sentido àquela convivência.
Atualmente, em Hacks, Jean Smart, que tem 72 anos, mostra que até o conflito geracional pode ser um grande mestre (e, de fato, não aprendemos apenas com os que vieram antes de nós). Num dos episódios mais emocionantes da terceira temporada, a protagonista Deborah Vance reluta em pedir desculpas por piadas que fez no passado e que viralizaram na rede gerando uma crise de imagem. É difícil pensar que ela vá escutar o conselho de sua roteirista Ava (Hannah Einbinder, que tem 29 anos), porém ao se abrir para ouvir os outros, Deborah entende que é por aí que começam as grandes mudanças. E não importa qual idade temos para operá-las.
Na vida real, o apagamento de décadas e o reconhecimento tardio, como disse a escritora Conceição Evaristo nesta entrevista à BBC Brasil, ainda estão postos. Ao mencionar uma perspectiva de bem-viver no envelhecimento, é impossível não sublinhar o quanto estamos atrasados tanto nesta como em absolutamente todas as demandas da população negra no País.
BBC Brasil - O que gostaria de dizer para outras mulheres?
Eu diria para não perderem a perspectiva de luta. Para olhar para o passado e pensar nas mulheres quilombolas, nas mulheres que mesmo com a liberdade cerceada conseguiram deixar a semente de luta, de liberdade, para nós.
É preciso construir o presente sem perder essa linha histórica. Sem perder o exemplo das mulheres que palmilharam o caminho para que hoje estejamos aqui.
Essa tal de Taciana Barros
Na semana passada, para minha grata surpresa, assisti ao show que celebrava o aniversário de 35 anos do disco Amigos Invisíveis, de Edgard Scandurra, que tem Taciana Barros, como co-autora de faixas como a linda Abraços e Brigas. Os dois eram casados na época e no palco do Sesc Pompeia estava o filho deles, Daniel, tocando baixo. Na plateia, bem ao meu lado, a netinha de Edgard e Taciana, Luna. Ela vibrava pelos avós e pelo pai.
Foi um show histórico, tanto pela celebração da música de altíssima qualidade, quanto pelo carinho do público (predominantemente acima dos 40). Ainda que Scandurra seja um dos maiores guitarristas em atividade no Brasil, foi a Taciana que roubou a cena no meu infinito particular.
Discreta, alternando vocais e instrumentos, Taciana Barros - talvez mais conhecida pelas minhas amigas mães como uma das criadoras do Pequeno Cidadão - me fez voltar à pistinha da adolescência. Quando tocava Gang 90 e As Absurdettes, uma banda mais cult entre as estouradas no fim dos anos 80, ela era das poucas imagens das meninas do rock que tínhamos.
Ser indie no Brasil não é fácil. Olhando para a grama do vizinho quando mencionamos a Kim Gordon (ex-Sonic Youth), por exemplo, percebemos o quanto o espaço na mídia e o conforto financeiro ainda faltam por aqui.
Talvez, em comum, os aplausos calorosos numa noite de outono, que ainda guardava resquícios de verão, naquela que sempre vamos chamar de Choperia do Sesc. Senti que os direcionados a ela foram um pouco mais longos. E fui para casa feliz. Passei a semana ouvindo a Taciana Barros em diferentes momentos. E deixo um aqui.
Rosas e Tigres
Amor de gente é assim, um beijo é justo um beijo
Olhar é só um sol olhar
Tigres na noite um vento que passou, dispersou
E na velocidade que a gente vive na cidade
O nome disso é saudade
kamikaze coração pra nunca deixar de te amar
kamikaze coração, amor de gente moça é o sim
Um beijo é justo o sol, beijar, olhar é só o céu olhar
Rosas e tigres um vento que passou dispersou
E na velocidade que a gente vive essa idade
O nome é felicidade
Kamikaze coração pra nunca deixar de te amar
Kamikaze coração
Como em todas as edições, essa tem playlist. Outro dia, rolando por vídeos no Instagram, vi uma mulher de mais 70 anos, toda felizona num pula-pula. Estava escrito em espanhol a legenda que eu traduzo: Nós não deixamos de brincar porque envelhecemos. Envelhecemos porque deixamos de brincar.
Antes de me despedir, é importante continuar o movimento solidário para o Rio Grande do Sul, que concentra uma das populações mais velhas do Brasil. A dica é doar para o asilo Padre Cacique.
É isso. Um abraço, obrigada e até semana que vem!
Eu amei! Melhor leitura para um sábado de manhã acompanhada de uma xícara de café 🥰
Que delícia de news, Lud. <3