O poder das nossas escolhas #23
Sobre pensar em cidades e soluções coletivas, não apenas em tempos de eleições. Como inspiração, Marjane Satrapi, Wislawa Szymborska e Nina Simone
🗳️ No domingo, 6 de outubro, 5.569 cidades brasileiras terão eleições municipais. Sei que o tema pode parecer cansativo para uns, quase uma guerra para outros ou mesmo desesperançoso para vários. Mas é importante para mim e para você.
Faço um parêntesis sobre esta edição que versa sobre a consciência de nosso papel político (que para mim também é cultural) e parte, como tudo que faço desde o número #1 de Um Teto Todo Meu, de experiências pessoais, da minha lente sobre o mundo em que vivemos.
“Quem não se movimenta não sente o peso das correntes que o prendem” - Rosa Luxemburgo
A cidade onde a gente nasceu ou escolheu viver merece que a gente coloque todos os pesos na balança, antes de apertarmos os dois dígitos que vão eleger quem vai ocupar a prefeitura e os cinco para os que vão compor a câmara dos vereadores.
Os pesos na balança, no meu caso, passam pela informação. Não é de hoje que a política mundial foi assolada pelas notícias falsas e elas têm efeitos danosos sobre a sociedade, como eleger quem construiu uma campanha a partir de narrativa mentirosa e enganou, especialmente, eleitores menos informados e mais vulneráveis.
Nem é preciso ser jornalista: basta desconfiar de números e histórias mirabolantes (uma dica para dar aquela forcinha, é acessar sites como Agência Lupa e Aos Fatos). Também vale a pena ir além: converse com seus amigos, com seus parentes e com seus vizinhos. Todo mundo já sentiu que eleições são capazes de romper vínculos, porém há com quem valha (sempre há) a pena retomar o diálogo.
Não é sobre concordar.
Nesse sentido, pensar a cidade, o lugar que queremos para amanhã passa por mais conversas fora da nossa bolha. Converse, por exemplo, com a manicure do salão que precisa de vaga na creche para os filhos, enquanto sai todo dia para trabalhar, com quem mora num extremo da cidade e trabalha no outro, acordando de madrugada para enfrentar uma rotina pesada no transporte lotado, com quem atua em serviços públicos essenciais, como educação e saúde.
Preste atenção nesse lugar, que é sua casa: a cidade melhorou, piorou ou ficou na mesma nos últimos quatro anos? As obras surgiram somente às vésperas das eleições? As árvores deram lugar ao concreto? Os temporais isolaram pessoas? Os serviços de transporte se ampliaram? Foram abertos mais hospitais? O salário dos professores teve reajuste? Inauguraram quantas bibliotecas? A merenda das crianças está mais saudável?
Absolutamente todas as perguntas são válidas.
Esse tudo junto misturado é o que ajuda nas nossas escolhas, que não é fácil nem para quem está bastante convicto. Porque arcamos coletivamente com as nossas certezas e com a ausência delas (votar branco ou nulo).
Eu sempre gostei de ser eleitora. Tirei meu título antes mesmo de completar 18 anos e pretendo votar mesmo quando for facultativo. Isso não me impede de dialogar com quem acha um fardo ser obrigado a votar, normalmente por desinteresse ou desilusão.
Fazendo mais um exercício: e não fosse uma obrigação, quem iria espontaneamente às seções? Teríamos energia para mudar os rumos da História em todo e qualquer ano eleitoral?
Nos Estados Unidos, onde votar é uma escolha, cada vez mais o voto dos jovens, das mulheres, das pessoas negras, dos imigrantes legais e das comunidades excluídas são os que importam.
Afinal, no tabuleiro da política, aqueles que sempre fizeram os movimentos e tomaram as decisões por séculos - no caso, os homens - preferem manter tudo como está. E será que isso é bom para todo mundo?
Na minha experiência de tantos canhotinhos de eleições guardados, nossa sociedade precisa melhorar bastante, ser plural, abrir-se para o novo e sempre respeitar diferenças. A participação política é uma dessas vias. E tudo começa na nossa cidade.
Só em 1932, as mulheres puderam votar no Brasil. Até hoje, em 2024, não vemos a equidade nas candidaturas, os mandatos das mulheres são mais desafiadores (a violência política é maior contra o gênero feminino) e pior: ainda ouvimos que não sabemos votar.
Eu gosto muito da expressão voto de confiança porque ela é uma via de mão dupla. Você pode dar o voto de confiança para quem admira, para quem acha que precisa de outra chance. O voto de confiança também é para quem representa a mudança. É um voto que se renova, não só a cada eleição, mas dentro de cada um de nós.
🎬 Sessão de cinema
Um dos filmes mais bonitos, tristes e impactantes sobre como uma reviravolta política atravessa nossas vidas é a animação “Persépolis”, de 2007, com direção de Marjane Satrapi e Vincent Paronnaud.
Inspirado graphic novel autobiográfica de Satrapi, o longa conta a história de sua família no Irã até o retorno do aiatolá Khomeini ao país, em 1979, que instaura a Revolução Islâmica.
A partir disso, o governo passa a controlar como as pessoas devem se vestir e agir. O novo regime faz com que Marjane Satrapi seja obrigada a usar véu, o que a incentiva a se tornar uma revolucionária.
📚 Wislawa Szymborska
A poeta foi vencedora do Nobel de Literatura em 1996. Nasceu em 1923 em Bnin, na Polônia, e morreu em 2012. Em 1931, mudou-se com a família para a Cracóvia, onde estudou literatura e sociologia.
Em 1949, seu primeiro livro foi censurado pelo regime comunista, que o considerou sombrio demais para as massas. Wislawa Szymborska publicou doze coletâneas de poemas.
Filhos da Época
Somos filhos da época
e a época é política.Todas as tuas, nossas, vossas coisas
diurnas e noturnas,
são coisas políticas.Querendo ou não querendo,
teus genes têm um passado político,
tua pele, um matiz político,
teus olhos, um aspecto político.O que você diz tem ressonância,
o que silencia tem um eco
de um jeito ou de outro político.Até caminhando e cantando a canção
você dá passos políticos
sobre um solo político.Versos apolíticos também são políticos,
e no alto a lua ilumina
com um brilho já pouco lunar.
Ser ou não ser, eis a questão.
Qual questão, me dirão.
Uma questão política.Não precisa nem mesmo ser gente
para ter significado político.
Basta ser petróleo bruto,
ração concentrada ou matéria reciclável.
Ou mesa de conferência cuja forma
se discuta por meses a fio:
deve-se arbitrar sobre a vida e a morte
numa mesa redonda ou quadrada.Enquanto isso matavam-se os homens,
morriam os animais,
ardiam as casas,
ficavam ermos os campos,
como em épocas passadas
e menos políticas.
🎶 Nina Simone
A artista norte-americana é uma das minhas maiores referências quando o assunto é política. Nina Simone poderia apenas ser uma cantora, compositora e musicista extraordinária, mas foi além.
Nascida Eunice Kathleen Waymon, na Carolina do Norte, em 21 de fevereiro de 1933, ela nunca se calou sobre a da luta pelos direitos civis da população negra. Até hoje segue inspirando novas gerações. Recomendo o documentário “What Happened, Miss Simone?”, de 2015, que traz gravações inéditas e tem imagens raras. Disponível no Netflix.
A playlist desta edição é o disco “In Concert”, que Nina gravou em 1964, na prestigiada sala de concertos Carnegie Hall, em Nova York. Foi considerado pioneiro da artista como voz de muitos ideais.
É isso. Um abraço e até semana que vem!
Que edição linda. Amei o poema, não conhecia, mesmo concordando com cada verso dele.
Um beijo.